quinta-feira, 7 de julho de 2011

Amavisse



"...ter um dia amado (amavisse)"

Vladmir Jankelevitch


II

Como se perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se fosse tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda desespedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.


III

De uma fome de afagos, tigres baços
Vêm se juntar a mim na noite oca.
E eu mesma estilhaçada, prenhe de solidões
Tento voltar à luz que me foi dada
E sobreponho as mãos nas veludosas patas.


De uma fome de sonhos
Tento voltar àquelas geografias
De um Fazedor de versos e sua estada.
Memorizo este ser que me sou


E sobre os fulcros dentes, ali
É que passeio e deslizo a minha fome.


Então se aquietam de pura madrugada
Meus tigres de ferrugem.
As garras recolhidas
Como se mesmo a morte os excluísse.


IV


Se chegarem as gentes, diga que vivo o meu avesso.
Que há um vivaz escarlate
Sobre o peito de antes palidez, e linhos faiscantes
Sobre as magras ancas, e inquietantes cardumes
Sobre os pés.
Que a boca não se vê, nem se ouve a palavra


Mas há fonemas sílabas sufixos diagramas
Contornando o meu quarto de fundo sem começo.
Que a mulher parecia adequada numa noite de antes
E amanheceu como se vivesse sob as águas.
Crispada.
Flutissonante.


Diga-lhes principalmente
Que há um oco fulgente num todo escancarado.
E um negrume de traço nas paredes de cal
Onde a mulher-avesso se meteu.
Que ela não está neste domingo à tarde, apropiada.


E que tomou algália
E gritou às galinhas que falou com Deus.


V


As maçãs ao relento. Duas. E o viscoso
Do Tempo sobre a boca e a hora.
As maçãs
Deixa-as para quem devora esta agonia crua:
Meu instante de penumbra salivosa.


As maçãs, comi-as como quem namora.
Tocando
Longamente a pele nua.
Depois mordi a carne
De maçãs e sonhos: sua alvura porosa.


E deitei-me como quem sabe o Tempo e o vermelho:
Brevidade de um passo no passeio.


VI


Que as barcaças do Tempo me devolvam
A primitiva urna de palavras.
Que me devolvam a ti e o teu rosto
Como desde sempre o conheci: pungente
Mas cintilando de vida, renovado
Como se o sol e o rosto caminhassem
Porque vinha de um a luz do outro.


Que me devolvam a noite, o espaço
De me sentir tão vasta e pertencida
Como se as águas e madeiras de todas as barcaças
Se fizessem matéria rediviva, adolescência e mito.
Que eu te devolva a fome do meu primeiro grito.


VII


Aquele fino traço de colina
Quero trancar na cancela
Da alma. Alimento e medida
Para as muitas vidas do depois.


Curva de um devaneio inatingido
Um todo estendido adolescente
Aquele fino traço da colina
Há de viver na paisagem da mente


Como a distância habita em certos pássaros
Como o poeta habita nas ardências.


VIII


Guardo-vos manhãs de terracota e azul
Quando o meu peito tingido de vermelho
Vivia a dissolvência da paixão.
O capim calcinado das queimadas
Tinha o cheiro da vida, e os atalhos
Estreitos tinham tudo a ver com o desmedido
E as águas do universo se faziam parcas
Para afogar meu verso. Guardo-vos, iluminadas
Recendentes manhãs tão irreais no hoje
Como fazer nascerem girassóis no topázio
E dos rubis, romãs.


IX


Amor chagado, de púrpura, de desejo
Pontilhado. Volto à seiva de cordas
Da guitarra, e recheio de sons o teu jazigo.
Volto empoeirada de vestígios, arvoredo de ouro
Do que fomos, gotas de sal na planície do olvido
Para recender a tua fome.
Amor de sombras de ocasos e de ovelhas.
Volto como quem soma a vida inteira
A todos os outonos.
Volto novíssima, incoerente
Cógnita
Como quem vê e escuta o cerne da semente
E da altura de dentro já lhe sabe o nome.


E reverdeço
No rosa de umas tangerinas
E nos azuis de todos os começos.


X


Há um incêndio de angústia e de sons
Sobre os intentos.
E no corpo da tarde
Fez-se uma ferida.
A mulher emergiu
Descompassada no de dentro da outra:
Uma mulher de mim nos incêndios do Nada.
Tinha o dorso de uns rios: quebradiço
E terroso.
O peito carregado de ametistas.
Uma mulher me viu no roxo das ciladas:
Esculpindo de novo teu rosto no vazio.


XI


Os ponteiros de anil no esguio das águas.
Tua sombra azulada repensando os rios
E agudíssimas horas atravessando o leito
Das barcaças.
Tem sido noite extrema. Finos fios
Sulcando de sangue as esperanças.


Os ponteiros de anil. Nossas duas vidas
Devastadas, num lago de janeiros.


XII


Se tivesse madeira e ilusões
Faria um barco e pensaria o arco-íris.
Se te pensasse, amigo, a Terra toda
Seria de saliva e de chegança.
Moldaria-te numa carne de antes
Sem nome ou Paraíso.


Se me pensasses, Vida, que matéria
Que cores para minha possível sobrevida?


XIII


Extrema, toco-te o rosto. De ti me vem
À ponta dos meus dedos o ouro da volúpia
E o encantado glabro das avencas. De ti me vem
A noite tingida de matizes, flutuante
De mitos e de águas. Inaudita.
Extrema, toco-te a boca como quem precisa
Sustentar o fogo para a própria vida.
E úmido de cio, de inocência,
É à saudade de mim que me condenas.


Extrema, inominada, toco-me a mim.
Antes, tão memória. E tão jovem agora.

(Hilda Hilst)

Esplêndido!

Um comentário:

  1. Realmente não só os escritos acima como seu blog todo é esplêndido. Parabéns! Se puder visitar o meu ainda estou começando...

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