segunda-feira, 18 de julho de 2011

Nocturnamente


 
Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo.
Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio.
Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces.
Diz o meu nome, pronuncia-o.
Como se as sílabas te queimassem os lábios.
Sopra-o com a suavidade de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça.
Porque sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno.
Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferida
exausta dos combates
em que a ti não consegui vencer.
Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem.
E é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos.
No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
Porque sou o eu dentro de ti
que te conforta
Sou o eu dentro de ti
a única veia que me dói,
Sou o eu dentro de ti
preso nessa gaiola
Que não vê o mundo de ponta a ponta
Esperando,
como se essa vida
fosse apenas de faz de contas.

(Mia Couto)

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