segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Da poesia anônima da vida...


Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio ao meu destino, alheio, até, ao destino próprio — inconsciência, carambas ao despropósito quando o acaso deita pedras, ecos de vozes incógnitas — salada coletiva da vida.
Mas o contraste não me esmaga — liberta-me; e a ironia que há nele é sangue meu. O que deveria humilhar-me é a minha bandeira, que desfraldo; e o riso com que deveria rir de mim, é um clarim com que saúdo e gero uma alvorada em que me faço.
A glória noturna de ser grande não sendo nada! A majestade sombria de esplendor desconhecido… E sinto, de repente, o sublime do monge no ermo, e do eremita no retiro, inteirado da substância do Cristo nas pedras e nas cavernas do afastamento do mundo.
E na mesa do meu quarto absurdo, reles, empregado e anônimo, escrevo palavras como a salvação da alma e douro-me do poente impossível de montes altos vastos e longínquos, da minha estátua recebida por prazeres, e do anel de renúncia em meu dedo evangélico, jóia parada do meu desdém extático.
Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reação contra mim desce-me da inteligência… Vejo-me (...), assisto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito... Aqui eu, a interpelar a vida!, a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como os gênios e os célebres! Aqui, eu, assim!…

(O Livro do Desassossego - Fernando Pessoa)


 

3 comentários:

  1. sou escritor e ja escrevi varios livros e seu texto eu avalio como excelente

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  2. I'm winging my way back home...mas não consigo lá chegar...sem saúde e sem dinheiro...
    Estás sempre em meu coração,
    Mesmo sempre longe de mim.
    Só me resta a solidão,
    Nesta vida até ao fim.

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Coração Primaveril

  Das invernais madrugadas não me recordo mais. Senhor dos tempos da ventura despiu-me de toda a névoa, vestiu-me de amanhecer...