domingo, 16 de outubro de 2011

Sobre o cuidado

Eu vi: cuidado é um presente. Dádiva. Zelo. O encontro de duas almas, uma disposta e uma outra nem tão entregue, nem tão liberta, mas muito precisa. Cuidado é um alongar de brechas, um olhar que repousa, um abraço que descansa, uma noite mal dormida. Uma palavra muda que esgarça o seu bordado de silêncio mais compreensivo e revelador. Um nó na garganta caindo por terra. Uma mão aniquilando ansiedades.
Não estou falando daquele cuidado enfeitado, planejado, cheio de compromissos. Não estou falando daquele cuidado matemático que calcula os nossos pontos fracos, que nos conta a demora desse estar-dentro-do-outro. Estou falando do cuidado que é próprio, sem tantas ideias, que corre à frente dos relógios, daquele que rompe a nossa preguiça. Estou falando de um cuidado que não anuncia a sua valentia e busca - e que não é menos forte por isso.
E penso, no cuidado que não nasce com algumas gentes. No cuidado que em muitos, é lacuna. Penso no cuidado estreitado, raro, nunca vivenciado. No cuidado que não se mostra, tampouco se despe para os seus escolhidos. É que, assim como o amor, o cuidado só corre bem quando é entrega, quando é o outro dentro da gente, quando é a possibilidade de uma calmaria, uma intuição bem resolvida, um esclarecimento.
Cuidado não é uma tentativa. Não é uma válvula de escape. Cuidado é poesia pronta que nos conta novas saídas. É inaugurar sóis dentro do outro em dias feitos de chuva. Dispensando a avareza no partilhar dos naufrágios já acalmados, cuidar é ofertar ao outro um barco nunca antes usado, um abraço nunca antes pertencido.

Cuidado é recomeço para dois ou mais sorrisos.

(Priscila Rôde)

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