Só deseja um amor saudável, quem
já viveu uma paixão dilacerante. Porque a paixão corroía tudo por dentro até
tirar o fôlego, mas até a dor parecia bonita: aquele único instante de
felicidade com o Outro compensava os trezentos outros de infelicidade.
Só
deseja ter um dia tranquilo, sossegado, quem tem a intensidade à flor da pele,
quem acorda suspirando a vida, devorando o dia, se lambuzando de tudo sem
conseguir tocar nas coisas com a ponta dos dedos. Só deseja constantemente a
companhia das palavras quem escreve. Para estas, o silêncio nunca é mudo, é sempre
uma possibilidade.
Só consegue vislumbrar a paz quem se investiga, quem tem Consciência
do que deseja e pode ou não obter, quem aprendeu a lidar com o imediatismo. A escrita ensina a esperar, a escutar a letra
da música e depois a melodia, juntas e separadas. A escutar a história do Outro
sem fazer intervenções antes da conclusão. A compreender que os espertinhos são
aqueles que sempre vão terminar levando uma rasteira da própria ingenuidade,
porque perderam a inocência.
Só consegue acordar para a vida, quem viveu solitário
e insone dentro de uma noite interminável e caminhou sonolento pelo resto do
dia, quem perdeu o sol. Só consegue apreciar a nudez, quem não é vulgar. Quem
percebe com naturalidade que um corpo é como uma árvore, que o seu ambiente é
extensão do meio ambiente e que, juntos, ambos são um ambiente inteiro.
Só
julga acidamente os Outros o tempo todo quem é recalcado. Quem se aprisionou na
ideia do que é ridículo e não consegue suportar um ser autêntico. Só consegue ser irônico, quem é inteligente.
Só consegue ser doce, quem já foi ferido e curado pela espiritualidade.
Só consegue o que quer os que têm
desejos justos. E acreditam.
(Marla de Queiroz)