quinta-feira, 26 de dezembro de 2013


...Seria eu uma garota polida vivendo uma vida lascada 
ou uma plebeia mundana em um conto de falhas!?

(Reflexões curiosas de uma mente barulhenta) 

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Na bruma leve das paixões que vem de dentro... (Alceu Valença)



Achegou-se com o frescor da brisa litorânea, 
mas com o calor de um aconchego manso.
Com tua voz, "caetaneou" aos meus ouvidos 
as mais diligentes poesias.
Tão doce foi teu gesto, que me fez almejar ser tua Marília... 
Deixar de ser somente uma ilha no coração dessa terra
e fundir-me ao mar do teu sertão.

(Juliana Alves)

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Vertigem...

 "(...) Apesar de minha familiaridade com os aliens, há em mim um peso humano de caminhante que me obriga, quase sempre, a voltar a minha pobreza de criatura terrestre. Não corrigi nenhum dos erros que cometi e sequer me pesa saber-me assim. E a roer-nos, os ratos dos anos. Rasgando pedaços de mim para colar em ti. Mendiga — diriam. E era. Não propriamente dos prazeres lascivos que as paixões desenfreadas inspiram. Nunca me deixaram ficar por tempo suficiente para saciar a fome de afeto que tinha do outro. Partiram sempre antes que lhes pedisse: fique. Culpá-los? Não... Não ouso. Por mais que enchessem as tigelas, morri, estoica, de uma miséria anônima de dar pena até nos mais desacreditados poetas. E, no entanto, minha fome não era diferente daquela que sentiam todos os outros. Eis-me aqui, lambendo até as tampas da profundidade e sem nunca saciar-me. O muito é para poucos. "

(Lídia Martins)
 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Da Doçura de Novembro



Mal se achegou novembro e já colho trigo, leite e mel, e sob o calor amoroso das sensações frescas preparo a benesse que o próximo ano há de frutificar.

Trago no peito a certeza que o que passou, agora já é pó, nada, cinzas de um fulgor que fez somente enrijecer o que não consumiu.

Assim, sob a fresta de luz que me dá passagem ao novo caminho, enfeito as janelas de novembro com sorrisos, cumprimento com o olhar ávido o que me adentra ao peito sem pedir licença.

Que venha essa inocência renovada adoçar os lábios de minhas preces e me prepare um verão no coração, acalentado por novos sonhos, infinitos rumos e doces surpresas, enfurnados pela brisa suave de uma fé incansável na beleza do porvir.

(Juliana Alves)

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Dos Diferentes Céus...


"Eu acho que há muitos céus, um céu para cada um. 
O meu céu não é igual ao seu. Porque céu é o lugar de reencontro com as coisas que a gente ama e o tempo nos roubou. No céu está guardado tudo aquilo que a memória amou..."


(Rubens Alves)


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Só...



Só deseja um amor saudável, quem já viveu uma paixão dilacerante. Porque a paixão corroía tudo por dentro até tirar o fôlego, mas até a dor parecia bonita: aquele único instante de felicidade com o Outro compensava os trezentos outros de infelicidade. 
Só deseja ter um dia tranquilo, sossegado, quem tem a intensidade à flor da pele, quem acorda suspirando a vida, devorando o dia, se lambuzando de tudo sem conseguir tocar nas coisas com a ponta dos dedos. Só deseja constantemente a companhia das palavras quem escreve. Para estas, o silêncio nunca é mudo, é sempre uma possibilidade. 
Só consegue vislumbrar a paz quem se investiga, quem tem Consciência do que deseja e pode ou não obter, quem aprendeu a lidar com o imediatismo. A escrita ensina a esperar, a escutar a letra da música e depois a melodia, juntas e separadas. A escutar a história do Outro sem fazer intervenções antes da conclusão. A compreender que os espertinhos são aqueles que sempre vão terminar levando uma rasteira da própria ingenuidade, porque perderam a inocência.
Só consegue acordar para a vida, quem viveu solitário e insone dentro de uma noite interminável e caminhou sonolento pelo resto do dia, quem perdeu o sol. Só consegue apreciar a nudez, quem não é vulgar. Quem percebe com naturalidade que um corpo é como uma árvore, que o seu ambiente é extensão do meio ambiente e que, juntos, ambos são um ambiente inteiro. 
Só julga acidamente os Outros o tempo todo quem é recalcado. Quem se aprisionou na ideia do que é ridículo e não consegue suportar um ser autêntico.  Só consegue ser irônico, quem é inteligente. Só consegue ser doce, quem já foi ferido e curado pela espiritualidade.
Só consegue o que quer os que têm desejos justos. E acreditam.



(Marla de Queiroz) 

terça-feira, 1 de outubro de 2013

O Tempo de Outubro...


O tempo tem sido um mestre supremo, sempre bendizendo alegrias, enaltecendo belezas, prismando luzes em cores vivas no meu coração... No tratado pacífico que lhe fiz, a cláusula principal é que ambos só nos ajudaríamos. Ele com seus dedos de cura e elixir de felicidade fazem de mim seu molde, a argila ganhando forma, conforme o que ele me apresenta em sua sábia pontualidade. E eu, não mais o atravancaria em seu inexorável caminho, sob nenhuma circunstância o apressaria, sob o julgo tolo da urgência. O deixaria livre para cumprir com seu papel de apascentar meus sonhos, amadurecer de forma doce os meus frutos, e desabrochar os meus botões com tanto afinco cultivados, pois a paciência é o preço da perfeição.

E nessa exultação temporal, evoco: Que venha Outubro! Venha com a força das infinitas possibilidades e com a calmaria dos alentos, das esperanças do por vir... Venha com milhares de sorrisos, mastigando medos e alargando-se aos desejos sinceros do coração. Que venha bailando sobre ventos-preces espalhando a aurora da vida nas voltas, que as cordas do tempo-ventríloco fazem a Terra dar.

(Juliana Alves)


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Sou um animal sentimental...


"Sabe, no fundo eu sou um sentimental. 
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo. Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, o meu coração fecha os olhos e sinceramente chora."

(Chico Buarque)


terça-feira, 17 de setembro de 2013

Do que me basta

Basta um gesto teu para que meu peito se exalte, meus olhos brilhem e minha alma se aqueça.
 
Basta uma única palavra tua, para que aos meus ouvidos soe uma canção, sinfonia harmônica de arcanjos, carreando levezas, devolvendo calmarias.
 
Basta apenas um olhar, para que em meu rosto um sorriso se expanda, e num clarão de paz, nos envolvam o prenúncio de uma sagrada felicidade nunca antes provada... Conspirada pelo Universo e concretizada, de sonhos longínquos, em um enlace espiritual de braços, no elo infinito do abraço.
 
Basta simplesmente sentir teu cheiro, na curva exata do teu pescoço, onde se encontram meus caminhos... Um aroma familiar, de algum outro tempo, que apazigua minha confusa memória, e me remete a alguma outra época, em que a alma já esteve e o corpo anseia voltar. Uma certeza e um deleite, em que se faz impossível não querer assim tão próxima estar.
 
Basta tão somente um toque teu, para minha pele se arrepiar, e num magistral encaixe, em teu cerne meu corpo se aconchegue... 
Nesse amoroso instante em que meu coração abençoa o teu e o fremir dos lábios revela a antiga prece de um anseio, o sublime encontro de um beijo.


(Juliana Alves) 

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Vem Pintando o Sete...


Enfim, o setembro primaveril, palco da renascença da vida, do brilhar de um sol intenso, do ressurgir das cores embelezando a visão, que foca um horizonte mais além... 

Chegado o tempo das sementes, outrora plantadas, germinarem à vontade nas terras férteis dos corações ansiados, impetrando mais vida... 

Do trigo, armazenado de um inverno, transformar-se em pão sob o calor amorável desse tempo, fazendo-se alimento sagrado ao espírito, devolvendo à alma o renovado viço.  

Vem menina, vem ver a verdejante esperança pintar o sete... Se bem me lembro, é assim que você renasce em setembro: de alma colorida, sorriso aberto, roupa florida e pele dourada carregando a cor dessa alma ensolarada, alagada de amor! 

(Juliana Alves)

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Erótica é a Alma....

 

...Saara, o deserto chora e com a chuva brotam flores de algodão.
Oh, Síria, minha tez é clara, tênue, frágil pra cruzar o teu clarão.
Sereia, escutar teu canto e não ter você 
pra sempre em minhas mãos...
Seria jogado as leoas se preciso fosse por seu coração.

(...)

Canto pra subir, canto pra dor, canto pra vida, 
canto para te encontrar
Feira marroquina, peça maia, Hindochina, 
porcelanas, aias, Lama,
Deusa Egípcia... 

(Regressão - Jorge Vercilo)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Ecdise...


"(...) depois de saber às vezes tudo muda, inclusive a carne, ou a pele que se abre, ou algo que se rasga."

(Javier Marías)


"E o que vejo, no escuro desta corrida a que me agrilhoo na ilusão de uma escolha que já não tenho, é o veludo da tua pele, o ferro do teu corpo fundindo-se ao meu."

(Inês Pedrosa)


Nosso amor é coisa de pele, ele dizia, num passado mais distante que o dos faraós egípcios. Ela achava lindo e respondia que quando ele tocava a sua pele, era a alma dela que se arrepiava. ‘Minha melhor roupa é a tua pele’, e a memória daquela frase a invadia com a força de uma possessão demoníaca.

(Carina B.)


"Não há memória mais terrível do que a da pele; a cabeça pensa que esquece, o coração sente que passou, e a pele arde, invulnerável ao tempo."

(Inês Pedrosa)


Olhou-se no espelho e só enxergou o vermelho-carne. O demônio possuía não só sua memória, mas seu corpo. Ou talvez ela tivesse se transformado no demônio. Quem sabe assim eu esqueço, falou sozinha, ou para o outro no espelho, e então entendeu:

 “a pele arde, invulnerável ao tempo.”


...só as cobras trocavam de pele... Mas ela, Naja desde a época de Cleópatra, conhecia o próprio veneno e sua cura. A pele antiga já caíra e a ecdise estava quase completa.

(Carina B.)


“O que será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar”

(Chico Buarque)


No dia em que estreou a nova pele na areia escaldante do Arpoador, alguém lhe encostou dedos gelados.

(Carina B.)

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Noturnamente...

 
"Noturnamente te construo para que sejas palavra do meu corpo, 
peito que em mim respira, olhar em que me despojo. 
Na rouquidão da tua carne me inicio, me anuncio e me denuncio.
Sabes agora para o que venho e por isso me desconheces."

(Mia Couto, in: Raiz de Orvalho e outros poemas)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Para ti...




Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti
criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que falhei
o sabor do sempre

Para ti
dei voz, às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo
estava em nós

Nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos,
simplesmente porque
era noite
e não dormíamos.

Eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos,
vivendo de um só olhar
amando de uma só vida.
 
(Mia Couto)

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Primeira vez em outro corpo...


“Uma noite, foi ela quem tomou a iniciativa com os versos que aprendia de tanto ouvir: – “Quando paro a contemplar meu estado e ver os passos por onde me trouxeste…” – recitou. E perguntou com picardia: – Como continua?
- “Eu acabarei, pois me entregarei sem arte a quem me saberá perder e acabar” – disse ele.
Ela repetiu os versos com a mesma ternura e continuaram até o fim do livro, saltando trechos, pervertendo e tergiversando os sonetos conforme a conveniência, brincando com eles à vontade, com um domínio de donos.
Tarde da noite, depois de um dia inteiro de disfarces, se sentiam amados desde sempre. Cayetano, meio de brincadeira e meio a sério, se atreveu a soltar o cordão do espartilho de Sierva María. Ela protegeu o peito com as duas mãos; houve uma chispa de raiva em seus olhos e uma rajada de rubor lhe incendiou o rosto.
Cayetano lhe agarrou as mãos com o polegar e o indicador, como se estivessem em fogo vivo, e as afastou do peito. Ela tentou resistir, e ele lhe opôs uma força terna mas resoluta.
- Repete comigo – disse: – “Enfim a vossas mãos hei chegado.”
Ela obedeceu.
- “Onde sei que hei de morrer” – prosseguiu ele, enquanto abria o espartilho com seus dedos gelados. Ela repetiu quase sem voz, trêmula de medo:
- “Para que só em mim seja provado o quanto corta uma espada num rendido.”
Então ele a beijou nos lábios pela primeira vez.
O corpo de Sierva María estremeceu com um gemido, e ela soltou uma tênue brisa marinha e se abandonou à própria sorte. Ele passou por sua pele as gemas dos dedos, tocando-a muito de leve, e viveu pela primeira vez o prodígio de se sentir em outro corpo.”

(Gabriel García Márquez em Do Amor e Outros Demônio) 


quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A(gosto) de Deus

 
Adentra-se às primícias de um mês cercado de superstições e agouros...
Não o vejo com os olhos turvos dos sem fé, neste respiro a bonança e colho os louros de ansiados tempos vindouros.

Enfim chegado o augusto tempo, delicio-me a cada aurora raiada...
Dulcíssima sensação de leveza dos que acreditam que pra se passar por agosto deve-se ter amor no coração (e tenho), além dessa bendita prece de felicidade nos lábios, mantra transcendental a todo o momento pronunciado...

Que assim transcorra, continue a me invadir, se intensifique e contagie infinitamente mais... Há de se ter mais força, há de se luzir acolhida pela paz, há de se ficar qualquer maldição para trás...

Há de se mergulhar em amores cada vez mais ternos, há de crescer as tenras asas em voos compartilhados ao encontro da vida, à alva emoção renovada de ser livre, de ser plena, florir sorrisos, olhares, uma alma olorosa de aromas almiscarados à espera de um setembro primaveril...

Que seja assim, tudo a(gosto) de Deus!

(Juliana Alves)

terça-feira, 30 de julho de 2013

terça-feira, 16 de julho de 2013

Do Infinito Ciclo do Amor



"O amor acaba. 
Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; (...) na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba."

(Paulo Mendes Campos)


segunda-feira, 24 de junho de 2013

Venha...



"...Que venha nas brumas do tempo, dos confins dos meus sonhos...
Que achegue-se ao meu corpo, acalente na redoma de teu abraço, minha pele de areia, áspera e ressequida de alento... 

Beije minha face, salgada de lágrimas há muito evaporadas.
Afague minha alma com o som saído de teus lábios, poesia doce como o maná sagrado...

Dome essa minha personalidade errante, de ar arredio, de quem muito foi ferida e teme o porvir.
Traga luz ao coração de quem desconfia da própria sombra, e se esconde sob uma armadura forjada ao fogo, que enrijece o que não consome. 

Mas venha, venha urgente e incisivo, venha e me arrebate, não me deixe escolha. É apenas o que lhe peço...
Venha, que lhe espero."

(Juliana Alves) 


quinta-feira, 13 de junho de 2013

125 anos - Fernando Pessoa - Alimentar o Ego



Para quem faz do sonho a vida, e da cultura em estufa das suas sensações uma religião e uma política, para esse primeiro passo, o que acusa na alma que ele deu o primeiro passo, é o sentir as coisas mínimas extraordinária — e desmedidamente. Este é o primeiro passo, e o passo simplesmente primeiro não é mais do que isto. Saber pôr no saborear duma chávena de chá a volúpia extrema que o homem normal só pode encontrar nas grandes alegrias que vêm da ambição subitamente satisfeita toda ou das saudades de repente desaparecidas, ou então nos actos finais e carnais do amor; poder encontrar na visão dum poente ou na contemplação dum detalhe decorativo aquela exasperação de senti-los que geralmente só pode dar, não o que se vê ou o que se ouve, mas o que se cheira ou se gosta — essa proximidade do objecto da sensação que só as sensações carnais — o tacto, o gosto, o olfacto - esculpem de encontro à consciência; poder tornar a visão interior, o ouvido do sonho — todos os sentidos supostos e do suposto — recebedores e tangíveis como sentidos virados para o externo: escolho estas, e as análogas suponham-se, dentre as sensações que o cultor de sentir-se logra, educado já, espasmar, para que dêem uma noção concreta e próxima do que busco dizer.

O chegar, porém, a este grau de sensação, acarreta ao amador de sensações o correspondente peso ou gravame, físico de que correspondentemente sente, com idêntico exaspero consciente, o que de doloroso impinge do exterior, e por vezes do interior também, sobre o seu momento de atenção. E quando assim constata que sentir excessivamente, se por vezes é gozar em excesso, é outras sofrer com prolixidade, e porque o constata, é que o sonhador é levado a dar o segundo passo na sua ascensão para si próprio. Ponho de parte o passo que ele poderá ou não dar, e que, consoante ele o possa ou não dar, determinará tal ou tal outra atitude, jeito de marcha, nos passos que vai dando, segundo possa ou não isolar-se por completo da vida real (se é rico ou não, — redunda nisso). Porque suponho compreendido nas entrelinhas do que narro, que, consoante é ou não possível ao sonhador isolar-se e dar-se a si, ou não é, com menor, ou maior, intensidade ele deve concentrar-se sobre a sua obra de despertar doentiamente o funcionamento das suas sensações das coisas e dos sonhos. Quem tem de viver entre os homens, activamente e encontrando-os, — e é realmente possível reduzir ao mínimo a intimidade que se tem de ter com eles (a intimidade, e não o mero contacto, com gente, é que é o prejudicador) — terá de fazer gelar toda a sua superfície de convivência para que todo o gesto fraternal e social feito a ele escorregue e não entre ou não se imprima. Parece muito isto, mas é pouco. Os homens são fáceis de afastar: basta não nos aproximarmos. Enfim, passo sobre este ponto e reintegro-me no que explicava.

O criar uma agudeza e uma complexidade imediata às sensações as mais simples e fatais, conduz, eu disse, se a aumentar imoderadamente o gozo que sentir dá, também a elevar com despropósito o sofrimento que vem de sentir. Por isso o segundo passo do sonhador deverá ser o evitar o sofrimento. Não deverá evitá-lo como um estóico ou um epicurista da primeira maneira — desnificando-se porque assim endurecerá para o prazer, como para a dor. Deverá ao contrário ir buscar à dor o prazer, e passar em seguida a educar-se a sentir a dor falsamente, isto é, a ter ao sentir a dor, um prazer qualquer. Há vários caminhos para esta atitude. Um é aplicar-se exageradamente a analisar a dor, tendo preliminarmente disposto o espírito e perante o prazer não analisar mas sentir apenas; é uma atitude mais fácil, aos superiores é claro, do que dita parece. Analisar a dor e habituar-se a entregar a dor sempre que aparece, e até que isso aconteça por instinto e sem pensar nisso, à análise, acrescenta a toda a dor o prazer de analisar. Exagerado o poder e o instinto de analisar, breve o seu exercício absorve tudo e da dor fica apenas uma matéria indefinida para a análise.

Outro método, mais subtil esse e mais difícil, é habituar-se a encarnar a dor numa determinada figura ideal. Criar um outro Eu que seja o encarregado de sofrer em nós, de sofrer o que sofremos. Criar depois um sadismo interior, masoquista todo, que goze o seu sofrimento como se fosse de outrem. Este método — cujo aspecto primeiro, lido, é de impossível — não é fácil, mas está longe de conter dificuldades para os industriados na mentira interior. Mas é eminentemente realizável. E então, conseguido isso, que sabor a sangue e a doença, que estranho travo de gozo longínquo e decadente, que a dor e o sofrimento vestem! Doer aparenta-se com o inquieto e magoante auge dos espasmos. Sofrer, o sofrer longo e lento, tem o amarelo íntimo da vaga felicidade das convalescenças profundamente sentidas. E um requinte gasto a desassossego e a dolência, aproxima essa sensação complexa da inquietação que os prazeres causam na ideia de que fugirão, e a dolência que os gozos tiram do antecansaço que nasce de se pensar no cansaço que trarão.

Há um terceiro método para subtilizar em prazeres as dores e fazer das dúvidas e das inquietações um mole leito. É o dar às angústias e aos sofrimentos, por uma aplicação irritada da atenção, uma intensidade tão grande que pelo próprio excesso tragam o prazer do excesso, assim como pela violência sugiram a quem de hábito e educação de alma ao prazer se vota e dedica, o prazer que dói porque é muito prazer, o gozo que sabe a sangue porque feriu. E quando, como em mim — requintador que sou de requintes falsos, arquitecto que me construo de sensações subtilizadas através da inteligência, da abdicação da vida, da análise e da própria dor — todos os três métodos são empregados conjuntamente, quando uma dor, sentida imediatamente, e sem demoras para estratégia íntima, é analisada até à secura, colocada num Eu exterior até à tirania, e enterrada em mim até ao auge de ser dor, então verdadeiramente eu me sinto o triunfador e o herói. Então me pára a vida, e a arte se me roja aos pés.

Tudo isto constitui apenas o segundo passo que o sonhador deve dar para o seu sonho.

O terceiro passo, o que conduz ao limiar rico do Templo — esse quem que não só eu o soube dar? Esse é o que custa porque exige aquele esforço interior que é imensamente mais difícil que o esforço na vida, mas que traz compensações pela alma fora que a vida nunca poderá dar. Esse passo é, tudo isso sucedido, tudo isso totalmente e conjuntamente feito — sim, empregados os três métodos subtis e empregados até gastos, passar a sensação imediatamente através da inteligência pura, coá-la pela análise superior, para que ela se esculpa em forma literária e tome vulto e relevo próprio. Então eu fixei-a de todo. Então eu tornei o irreal real e dei ao inatingível um pedestal eterno. Então fui eu, dentro de mim, coroado o Imperador.

Porque não acrediteis que eu escrevo para publicar, nem para escrever nem para fazer arte, mesmo. Escrevo, porque esse é o fim, o requinte supremo, o requinte temperamentalmente ilógico (...), da minha cultura de estados de alma. Se pego numa sensação minha e a desfio até poder com ela tecer-lhe a realidade interior a que eu chamo ou a A Floresta do Alheamento, ou a Viagem Nunca Feita, acreditai que o faço não para que a prosa soe lúcida e trémula, ou mesmo para que eu goze com a prosa — ainda que mais isso quero, mais esse requinte final ajunto, como um cair belo de pano sobre os meus cenários sonhados — mas para que dê completa exterioridade ao que é interior, para que assim realize o irrealizável, conjugue e contraditório e, tornando o sonho exterior, lhe dê o seu máximo poder de puro sonho, estagnador de vida que sou, burilador de inexactidões, pajem doente da minha alma Rainha, lendo-lhe ao crepúsculo não os poemas que estão no livro, aberto sobre os meus joelhos, da minha Vida, mas os poemas que vou construindo e fingindo que leio, e ele fingindo que ouve, enquanto a Tarde, lá fora não sei como ou onde, dulcifica sobre esta metáfora erguida dentro de mim em Realidade Absoluta a luz ténue e última dum misterioso dia espiritual.

(Fernando Pessoa, 'Livro do Desassossego')


 

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Quero...

 
"Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.
No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor."

Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco'

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Agora que sinto amor...




"Agora que sinto amor tenho interesse no que cheira.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver."

(Alberto Caeiro)

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Quando acordei poesia...

 
"Quando acordei Poesia, acendi um punhado de tarde. 
Risquei infinitos na parede dos sonhos. 
Libertei dilúvios. Fiz sentido. (...) 
Chorei um amor e acalmei milagres. 
Oscilei sobre as nuvens e o ocaso. 
Abasteci o coração com quase cem mil pássaros.
 Por acaso, fiquei eterna."

(Priscila Rôde)

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Ao A-cor-dar de Junho


Evoco todas as emanações de bem-querer
e entoo todas as sinfônicas preces,
brotadas dos mais sublimes dialetos cordiais,
em gratidão pela paz, pela doçura cotidiana que venho experimentado...
Assim, já é meado de ano e adentro ao mês de Junho....
Junho e seus santos, suas canções e milagres...
Meu mês, mês que completo mais um ciclo,
mais uma volta dessa grandiosa espiral da vida...
Que seja cada dia mais leve, mais doce, mais luz....
Um a-cor-dar multicolorido de dentro para fora,
trazendo a cor dourada à pele de uma alma ensolarada!

(Juliana Alves)

Coração Primaveril

  Das invernais madrugadas não me recordo mais. Senhor dos tempos da ventura despiu-me de toda a névoa, vestiu-me de amanhecer...